sexta-feira, 11 de março de 2011

Um pouco sobre um dos meus livros preferidos *_*

      
       O enredo de Bento é um tanto quanto complexo, o que não significa ser de difícil compreensão. A princípio, o leitor fica perdido nos primeiros capítulos pelo fato de, apesar da história se passar num cenário genuinamente brasileiro, o país nos é apresentado de uma forma completamente diferente do que um dia pudemos imaginar, algo quase apocalíptico, embebedo na mais pura e benfeita ficção fantástica. Após uma noite, intitulada pelo autor “Noite Maldita”, a população mundial depara-se com um panorama, no mínimo, pavoroso. Parte das pessoas que dormiram, acordam com intolerância à luz solar, raiva em demasia e um desejo inumano de se alimentar com sangue humano. Estes resolvem, então, por viver em bandos, tais quais animais, já que, juntamente com as mutações citadas, surge também a perda parcial da racionalidade, tornando-os anti-sociais para com outra espécie. A outra parcela que também acorda se mantém humana, perdida em meio ao caos instaurado em todos os cantos do mundo. E outra boa parte da população continua dormindo, em uma espécie de coma induzido. Da face da Terra, são varridas todas as mazelas, todas as doenças, as quais antes acometiam os humanos. Desta forma, morrer por causa de uma infecção em Bento é impossível. Existem somente duas maneiras de falecer, ou pelas presas dos novos vampiros, ansiosos por sangue humano, ou em batalhas contra as bestas, quando se é ferido e não tratado rapidamente.
       A grande sacada do Vianco foi justamente transformar o conhecido em completo desconhecido, tornando o Brasil algo antes nunca visto. Ele concretou bastante o enredo, deixando-o consistente e sem nenhuma brecha que possua deveras importância para o produto final. Caso vivêssemos de fato em um mudo ficcional, seria impossível dizer que o enredo de Bento é algo improvável, pela densidade “lógica” dos fatos bem amarrados. Transformando o Brasil em um cenário completamente selvagem, Vianco agrupa os humanos sobreviventes em fortalezas afastadas dos centros urbanos, cujas construções agora servem de “ninhos dos malditos” – os vampiros.
       Este é outro ponto forte do livro, a união das pessoas, uma protegendo a outra, buscando a sobrevivência e nada além, pois no Brasil de Bento as tecnologias foram desabilitadas pelos malditos, assim como o dinheiro perdeu o seu valor. Apesar dos adormecidos se caracterizarem um fardo de extremo perigo para os humanos sobreviventes, eles são protegidos com todas as forças contra os vampiros, que vislumbram nos adormecidos alimento sem fim, “rios de sangue”. As fortalezas e seus conglomerados de humanos guardando os adormecidos nos faz pensar em valores básicos, virtudes cruciais, que estão sendo perdidas, como solidariedade, a humildade, a falta de interesses próprios. Em Bento, todos lutam por todos, e, aqueles que preferem abrigar a marginalidade em si são postos para fora das fortificações e vão servir de criados – “mulos” – para os vampiros.
      Os personagens de Bento são por demais cativantes, sem exceção; até mesmo os malditos conseguem a nossa simpatia. Todos são descritos da melhor forma por Vianco, que percorre toda a vastidão do Brasil apresentando personagens com histórias “reais” e convincentes. No início da trama, o recém-acordado Lucas, protagonista, vê-se num mundo diferente do qual havia dormido há trinta anos. Por isso, nos primeiro capítulos, ele se torna um tanto quanto enfadonho – talvez essa seja a proposta do autor – pois as dúvidas de Lucas nos sufocam da mesma forma que o sufocam. Todavia, quando compreende a sua missão com Bento, o salvador da humanidade, torna-se altivo e afável, e lidera as suas tropas de sobreviventes na trilha rumo a quatro milagres preditos em uma profecia, milagres estes que aniquilarão os vampiros. O fato de quatro (“míseros”) milagres serem capazes de mudar um enredo tão bem endossado deixa o leitor cabreiro quanto ao final da trama. Entretanto, asseguro que Vianco “finaliza” o livro de maneira primorosa.
      A descrição dos cenários de Bento nos deixa boquiabertos. Imagine a grande São Paulo infestada por vampiros, às ruinas, completamente abandonada pela vida humana, com a floresta crescendo sobre o asfalto, onças pintadas e revoadas de araras-azuis reavendo o que lhes foi roubado com a urbanização. A peregrinação de Lucas para concluir a sua missão mostra no que o Brasil se transformou. Gorilas fugitivos dos zoológicos desativados se procriando nas matas, cidades como Salvador, Rio de Janeiro e Natal que viraram covis de malditos. Com a leitura de Bento, e a partir do ponto de vista fantástico do Vianco, podemos ver o Brasil no qual vivemos de uma forma completamente adversa da qual estamos habituados.
      Outro ponto interessante, o qual vale a pena ser enfocado, é a questão religiosa presente sempre no livro – a começar pelo título. Para um “novo mundo”, uma nova religião. Nisto consiste a proposta religiosa do autor. O mundo foi mergulhado no caos, num intervalo de tempo denominado pelos personagens como “o cochilo de Deus”. Assim, cabe a cada um agarrar-se em algo para acreditar. Todos são livres para cultuar aquilo que seja a verdade para si e o conforte, protegendo-se contra os vampiros – os quais são, sob o meu ponto de vista, metáforas para o lado sombrio, insensato, irracional e cruel de nós mesmos. É impossível negar a filosofia mística contida em Bento. Vianco utilizou-se de ficção de qualidade para nos mostrar o caos no qual vivemos, e como seria bom habitar no mundo “pós-noite maldita”, ainda que rodeados e ameaçados por vampiros sanguinolentos.
          Para aqueles que torcem o nariz ao ver Bento e sua capa funesta nas prateleiras de uma livraria, é melhor dar mais atenção a ele, e aos novos escritores brasileiros. A história vai muito além de uma caça aos vampiros e é capaz de emocionar os leitores com o “término” do livro. André Vianco é um dos autores mais conceituados da literatura fantástica brasileira na atualidade. Com mais de quinze livros publicados e poucos anos sobre os ombros, Vianco sempre consegue surpreender o leitor, mesmo usando temas recorrentes.

Tiago Santos direto da Fábrica de sonhos

2 comentários:

  1. Rio de Janeiro e Natal que viraram covis de malditos...rs
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    Bom Livro,meso que o conceito seja de certa forma vago em algo que gostaria que fosse explorado. gostei ^^,''

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  2. AHHHH - o meu texto. Fico muito feliz que tenha gostado e postado aqui no seu blog, Greyci. Muito mesmo. Os portões da minha Fábrica de Sonhos estarão sempre abertos para você.

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